segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Nunca mais

Alberta Sordi (*)

Wendy acordou num sobressalto. Mal conciliou o sono e pulou em tropeço, ouvindo um tilintar suave e contínuo. Peter, grudado à janela, batia de leve no vidro:
- Wendy! Me deixe entrar!
Sorrateira e tentando não fazer ruídos, Wendy soltou a tranca, e Peter entrou pulando. Era madrugada e Wendy, fazia pouco, desmontara-se para descansar antes que o sol lhe viesse queimar as pestanas.
- Peter, o que faz aqui? Fritei por horas até que Morfeu viesse e quando, finalmente, eu estava em seus braços, você me acorda. (alheio a tudo, Morfeu roncava na cama, as coxas de ébano brilhando contra o lençol)
- Wendy, vamos para a Terra do Nunca.
- Mas logo hoje? Passei a noite numa plataforma 15, montada e maquiada, fui hostess, stripper, paguei mico e michê, tô morta e amanhã pego cedo no banco!
O traje verde-esmeralda de Peter contrastava com a camisolinha azul-turquesa de Wendy.
- Wendy, pega teu cartão de crédito que numa piscada a gente viaja.
Relutante e cheia de pruridos, Wendy vasculhou a bolsa de fuxico onde ela guardava toda sua vida: RG, CPF, um batom vinho-disco da Avon, carteirinha de doadora de órgãos e um cartão de débito (porque crédito ela não tinha nem pro cigarro).
- Tá aqui o cartão. E agora?
Peter limpou o tampo do toucador (uma espécie de penteadeira com espelho oxidado e perfumes de camelô) e despejou o que seria a passagem dos dois para outra vida.
- Mas Peter! Isso é pó!!!
- Sim, Wendy. Pó de pirilimpimpim! Basta um longo suspiro e acordaremos na Terra do Nunca.
Assustada, mas curiosa, Wendy aspirou fundo ao mesmo tempo em que vislumbrava na paisagem da janela aberta uma nesga de luz. “É o sol”, pensou. Peter segurava sua mão, enquanto o chão lhe fugia dos pés. A cidade pequenina despertava sozinha bem lá embaixo, a Terra do Nunca nunca esteve tão próxima, tão real. Nunca sentir-se estranha, nunca fazer linha, nunca fingir, nunca mais sofrer.
(...)
Um DJ croata comandava o after hours na Terra do Nunca. Pista lotada.
- Peter, quem é aquela loirinha de minissaia?
- É Sininho.
Wendy badalou sem limites. E perdeu a hora no banco.
- Quem mandou o crocodilo engolir o despertador?


(*) Alberta Sordi tem a idade dos papiros, mas nunca fez plástica.

O tempo destrói tudo

Alberta Sordi (*)

Tenho a idade dos papiros, mas nunca fiz plástica. Cultivo cada ruga, cada sulco, cada pêlo no queixo com o mesmo carinho que dedico às gloxínias que mantenho – cada uma solitária em seu vaso – na varanda onde assisto ao sol morrer todo dia. Apesar da idade, jamais presenciei uma aurora. A luz natural me é nociva e na minha pele tem o poder de uma gota de súlfur sobre uma rosa. Ao chegarem os primeiros frescores da noite, escolho um de meus copos de haste para enchê-lo com vinho tinto seco ou champagne brüt. Meus dedos curvos e paralisados pela artrite não mais escrevem: dito meus textos em voz alta e quase sem pausa para que Lédia – minha fiel secretária e que pensa me odiar secretamente há mais de 30 anos – anote tudo com rapidez taquigráfica.
Nua diante do espelho, vejo tomates secos circundados por textura de casca de noz, ameixa seca e centenas de passas de uva misturando-se às ramificações esverdinhadas que, devido à péssima circulação, culminam em azulados nódulos. E tantos caminhos e bifurcações dão ao meu corpo a aparência de um imenso mapa rodoviário.
Passo os dias buscando meus melhores momentos em cantos remotos da memória. Meu verbo é sempre pretérito e meu futuro se resume às próximas horas em que conseguirei respirar sem a ajuda de aparelhos. Não fiz descendentes – o que me parece um favor à humanidade.
Então, por que não me mato? Não gosto da sujeira que a morte faz quando provocada. Prefiro recebê-la bem-vestida e perfumada, no peito aquela sensação de que o amante está para chegar. Na varanda, onde assisto ao sol morrer todo dia, brindo ao segundo preciso do abraço definitivo. E espero que seja hoje.

(*) Alberta Sordi acredita que “melhor idade” só fica bem em propaganda de seguro

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O primeiro amor real

A primeira vez que não cobro. É, pela primeira vez experimento o amor sem cobranças. Aquele que é verdadeiramente o laço - caso se desfaça permanecerá inteiro como deve ser. Esse amor que liberta, me liberou das cobranças de mim mesma. Me ensinou a amar a Letícia, a guria simples que veio do interior, que nada tem a ver com o glamour da Laura. A guria que sente medo, carência, rejeição, mas que não teme errar, começar de novo, se mostrar como é em sua simplicidade e sua excentricidade.
O amor que ama a recusa, inclusive; que ama o freio à vaidade, que impõe limites, que é deliciosamente e loucamente original nos devaneios, nas letras e nos silêncios.
Só há um enigma a resolver: sentimentos já existem e eles não se reciclam. Fazemos o que agora?
Já me joguei... e não quero voltar sem você...

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Cinza

O dia estava cinza como eu. Cinza porque o preto é ícone de tristeza e o branco é ícone da alegria. Assim eu simbolizei as cores do meu dia. O amarelo do sol, o azul do céu, o prata da chuva, tudo era coadjuvante. O cinza é ícone do aprendizado. E não existe aprendizado sem tristezas e alegrias. Quando se mistura tudo num caldeirão e se tira proveito dos reveses ou não se deixa a alegria acordar a vaidade do sono profundo, tudo fica cinza. É um modo bonito de ver a vida. Há verdade no cinza.
Não é simplesmente estar feliz ou triste. É ser autêntica consigo mesma. Descobrir a verdade interior, a poesia do pôr-do-sol, a pieguice das palavras doces e o remédio que elas representam na vida de muita gente, o tom do céu de outono, o chamado do mar, a música das ondas e das chuvas, o prazer dos olhares e das palavras não ditas, o silêncio que ecoa nas almas surpresas, a matemática do amor.
 
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