segunda-feira, 25 de agosto de 2008

O tempo destrói tudo

Alberta Sordi (*)

Tenho a idade dos papiros, mas nunca fiz plástica. Cultivo cada ruga, cada sulco, cada pêlo no queixo com o mesmo carinho que dedico às gloxínias que mantenho – cada uma solitária em seu vaso – na varanda onde assisto ao sol morrer todo dia. Apesar da idade, jamais presenciei uma aurora. A luz natural me é nociva e na minha pele tem o poder de uma gota de súlfur sobre uma rosa. Ao chegarem os primeiros frescores da noite, escolho um de meus copos de haste para enchê-lo com vinho tinto seco ou champagne brüt. Meus dedos curvos e paralisados pela artrite não mais escrevem: dito meus textos em voz alta e quase sem pausa para que Lédia – minha fiel secretária e que pensa me odiar secretamente há mais de 30 anos – anote tudo com rapidez taquigráfica.
Nua diante do espelho, vejo tomates secos circundados por textura de casca de noz, ameixa seca e centenas de passas de uva misturando-se às ramificações esverdinhadas que, devido à péssima circulação, culminam em azulados nódulos. E tantos caminhos e bifurcações dão ao meu corpo a aparência de um imenso mapa rodoviário.
Passo os dias buscando meus melhores momentos em cantos remotos da memória. Meu verbo é sempre pretérito e meu futuro se resume às próximas horas em que conseguirei respirar sem a ajuda de aparelhos. Não fiz descendentes – o que me parece um favor à humanidade.
Então, por que não me mato? Não gosto da sujeira que a morte faz quando provocada. Prefiro recebê-la bem-vestida e perfumada, no peito aquela sensação de que o amante está para chegar. Na varanda, onde assisto ao sol morrer todo dia, brindo ao segundo preciso do abraço definitivo. E espero que seja hoje.

(*) Alberta Sordi acredita que “melhor idade” só fica bem em propaganda de seguro

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