Estava quase mudando o título deste post quando me veio a idéia de procurar no dicionário o significado da palavra ‘vulgarizar’: tornar muito conhecido, divulgar, propagar. Portanto, o título é perfeito para minha linha de raciocínio.
Tempos atrás eu publiquei um texto sobre a construção do imaginário. Comentei como naturalmente criamos mitos em cima de pessoas que só conhecemos virtualmente ou com alguma distância em evento e festas, fetichistas ou não.
Recentemente comprei o livro 50 Tons de Cinza. Aliás, confesso, comprei logo toda a trilogia mesmo sabendo que os dois outros livros demorariam alguns meses para chegar. Comprei de teimosa, porque a maior parte dos meus amigos já torceu o nariz de cara para a sinopse. Assisti a alguns vídeos e fiquei apavorada quando a estória foi comparada a Crepúsculo – que não é exatamente o tipo de literatura que curto. Resumindo, pelas previsões, tinha tudo para odiar o livro e ter jogado meu rico dinheirinho no lixo.
Porém, surpresa! Eu amei o livro. Li em menos de dois dias as mais de 500 páginas do volume, ansiosa para que chegue o segundo, previsto para o mês que vem. E em meio a tantas críticas e o massacre da autora, resolvi escrever sobre o dito cujo com o pouco de autoridade que minha paixão por livros e meus anos de BDSM me conferem.
Analisemos os fatos. O livro foi escrito por uma mulher para mulheres LEIGAS. O livro tem uma narrativa bem construída, que cumpre perfeitamente aquela vontade louca de devorar uma página atrás da outra. O livro tem romance de forma pouco piegas e nada convencional. O livro mexe com a fantasia de toda mulher – ter em algum momento da vida um homem lindo, que a proteja e por que não rico?
Logo, o sucesso seria fatal. Se a senhora Erika Leonard James queria polêmica, ela conseguiu com elementos simples de acordo com os conceitos mais banais da psicologia social. Considerada uma das personalidades mais marcantes e influentes da Inglaterra contemporânea, a autora pisou num terreno sedento por aceitação. Por mais bem resolvidos que nós os fetichistas e / ou sadomasoquistas sejamos, sabemos que a marginalidade é a nossa praia e isso nem chega a incomodar alguns; mas perturba a muitos.
Li num comentário de um amigo que Cinquenta Tons de Cinza é uma trilogia como Sabrina ou Júlia, ou qualquer romance água com açúcar que recheou os sonhos das meninas-moças das décadas de 60, 70, 80 e 90. Sim, concordo. E eu adorava aqueles romances.
Raramente entro em discussões acaloradas nas redes sociais porque penso que após dois ou três trechos o argumento dá lugar à vaidade numa disputa sedenta pela razão. Prefiro ficar lendo e refletindo. Porém, a reflexão central do sucesso de 50 Tons para mim passa por uma questão importante: por que o diferente precisa ser denso? Ou melhor, por que a leveza de um romance não pode habitar estórias fetichistas ou SM?
Partindo do pressuposto que a literatura, assim como o teatro, o cinema e as artes em geral devem nos levar a mundos distintos por meio do lúdico, do prazer, do novo, do inusitado, da provocação e até do incômodo, qual o grande ‘erro’ de 50 Tons para estar sendo tão criticado pelo público SM? Será que é medo de que muita gente queira de fato conhecer esse mundo perverso, mundano e luxurioso e nos perturbe a paz com suas perguntas ingênuas ou descabidas? Ora, senhores, e isso já não acontece com freqüência mesmo antes destes fenômenos literários que tiraram a poeira das prateleiras de Sade e Bataille?
Mulheres buscando um príncipe encantado, de chicote ou cavalo, sempre vão existir. Aliás, elas estão aos montes no FetLife e em todas as redes sociais, muitas vezes disfarçadas em peles costuradas em letras muito bem escritas, ideologias requentadas e frases de efeito reconstruídas.
Tons indigestos
Ok, o livro é ingênuo para um praticante SM. Concordo. Até porque talvez até eu virasse sub “Alice” se um Christian Gray me aparecesse pelo caminho...rs
O que temos na vida real é bem mais cru esteticamente e na prática! Não há quartos da dor, tampouco concessões contratuais naquele nível. Eu pelo menos nunca soube de nada parecido.
Talvez uma impressão mais próxima da realidade, igualmente despertando emoções, só que de forma mais crível para a mente de um sadomasoquista, está contida no livro Amsterdã SM, do professor Antonio Vicente Seraphim Pietroforte. Na trama - que uns dizem ser autobiográfica - o autor narra as bizarrices da capital do submundo numa perspectiva fetichista. As sensações inquietantes e indigestas nos fazem viajar pelas cenas da capital holandesa. Não a toa é considerada a melhor novela erótica sobre o tema escrita em português.
#ficaadica
Tons inversos
E o que seria a relação Anastacia Steel e Christian Gray real?
Em primeiro lugar, o livro me despertou lembranças, emoções inquietantes e nostálgicas pelas quais me senti confortada em perceber suas existências. Emoções relativas a submissos e dominadores com os quais tive relacionamento. Logo, se as emoções existiram, é porque existe um vínculo do devaneio da autora com as reais práticas BDSM.
O vínculo maior, para mim, foi a inquietação que uma pessoa sente ao entrar neste mundo. A sensação de ser diferente, lasciva de forma insana. Não é rebeldia; é a transgressão de si mesmo. E esta sensação está impregnada nas páginas de 50 Tons, sobretudo na personagem de Anastasia, a submissa.
Outro ponto fundamental que acho similar ao real é como a submissa conduz verdadeiramente a relação. Uma fala de Gray mais ou menos no meio do livro chega a declarar essa premissa com todas as letras. Eis uma ‘verdade’ polêmica da qual sempre falei em textos e conversas. O poder do submisso é muito grande e está na sua satisfação muitas das posturas do dominador. Com a desculpa de agradar ao dono ou dona, o submisso ou submissa se submete a certas transgressões, mas na verdade testa os limites e o poder de quem está acima no chicote, exigindo disciplina, equilíbrio e estudo freqüentes, além de uma sensibilidade e responsabilidade de que pouco se fala neste universo.
Por fim, apesar de ser um livro com poucas entrelinhas – tudo passa a ser muito explícito logo na terceira página -, há algo de revelador nas tentações movidas pelo marketing de prateleira. A dominação psicológica sempre terá mais valor do que qualquer prática ou mesmo teatro SM. E se E.L. James bebeu ou não bebeu da fonte (ela nega em entrevista recente concedida à Revista Veja), só ela mesma para explicar os agradecimentos prévios do livro. Para mim, fica claro que sim. Ela dá detalhes demais para alguém que apenas imaginou um cenário sadomaso. E sabemos muito bem que quando se trata do Lado B de cada um, tudo é muito relativo. Agatha Christie que o diga...
* Texto originalmente publicado no Portal iFetiche